segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Maria Thereza Alves

M.T. Alves nasceu no Brasil em 1961 (o pai dela veio da cidade de Butiá, no estado do Paraná, no Sul do país), mas viveu na América do Norte desde a infância, recebendo sua educação e, eventualmente, os estudos na Cooper Union School of Arts, em Nova York. Na década de 1970, conheceu Jimmie Durham (um ameríndio Cherokee), com quem se casou e vive até hoje. Depois dos conflitos de Wounded Knee, em que policiais cercaram a reserva de Pine Ridge, na Dakota do Sul, Durham virou representante dos índios na ONU. Foi quando Alves ofereceu sua ajuda. "Pensei que ela fosse uma espiã, então disse que não queríamos nada", lembra Durham. "Mas acabei indo atrás dela na rua e estamos juntos desde então.” Na época, Alves fazia lobby nos Estados Unidos contra o tratamento que o governo brasileiro dava aos índios. De volta ao país, ela trocou o PT (Partido dos Trabalhadores) para ser uma das fundadoras do Partido Verde (PV) e esteve nos debates em torno da Constituição de 1988.

Maria Thereza Alves deixou as Américas pela Europa há mais de 15 anos, porque, diz Alves: “Eu senti que em todo o continente americano não havia como participar, devido às estruturas coloniais e as sociedades hipercoloniais. Não há espaço possível nem para um debate sobre colonialismo, principalmente no Brasil, onde nasci. E na maioria dos países latino-americanos, com poucas exceções, se você não é um membro da elite governante, é provável que esteja onde estiver, você não tem chance de participar da política cultural.” Nômade e cidadã do mundo, Alves transpõe suas raízes na busca por uma nova identidade, o que se reflete em seus trabalhos recentes pela disponibilidade de atenção especial extrema ao contexto em que atuam como artistas.

Se tentarmos explicar o método de trabalho de Alves, é uma mistura de situações em que uma realidade é substituída por outra: outros costumes, outros usos, outros eventos que foram cobertos. Então, ela volta, mais adiante, para entender o que foi levado junto, aproxima-se mais dos fenômenos do comportamento de deslocamento, mas também de viagens geológicas e botânicas, por exemplo. Fala-se muito dos caminhos percorridos ou não compartilhados pelos outros, como as tantas experiências que constituem uma identidade. Assim, sua prática artística prende diversas formas que, a cada vez, documentam o real utilizando mais as ferramentas da arqueologia do que da antropologia.

Um dos primeiros trabalhos da artista foi uma série fotográfica em P&B, a convite de seu tio. Passando-se por uma fotógrafa do New York Times, ela registrou trabalhadores e moradores de uma área rural neglicenciada no sul do Brasil, como prova de suas existências, caso fossem escravizados – uma prática ainda comum nessas regiões do país. A série ficou conhecida como Brazilian Recipes (Receitas Brasileiras).



Brazilian Recipes. Série de fotos preto e branco

Em seguida, suas fotografias ganharam as cores do tradicional histórico cultural da América Latina, no fim da década de 1980.


John Spencer, 1988. Fotografia colorida montada em alumínio


Mercedes Gomez, 1988. Fotografia colorida montada em alumínio.

Suas primeiras instalações de destaque acontecem na Galeria Mercer Union, no Canadá, em 1994.
Nowhere é a terceira de uma série de instalações de Maria Thereza Alves, e todas tiveram nomes sucintos que eram eles mesmos sobre nomenclatura. No Soy Su Madre (Eu não sou sua mãe) foi a primeira e fez alusão ao tipo de epítetos que o homem tem tradicionalmente usado em referência à natureza, como a "mãe natureza", "mata virgem" e assim por diante, em que ele projetou sua atitude em relação ao sexo feminino. A segunda, Pós-Eldorado da Amazônia, sugeriu que, embora possa ser fácil para nós ver uma fantasia espanhola do século XV de um remoto e detectável "lugar de ouro", como uma obsessão estreita e lamentável, o espírito que deu origem para ele ainda está conosco, ainda dirigindo nossas ações e pensamentos.

'Nowhere' é uma tradução da palavra grega Utopia, que Thomas More usou para o título de seu famoso livro de 1516. Assim, ele usou uma palavra que denotava uma terra ou lugar, mas que realmente significa nenhum lugar; ou, ainda, ele usou uma palavra que aparentemente significa nenhum lugar, mas na verdade, postulou a possibilidade de um lugar real. Esta não é uma distinção arcana como parece, porque, se aparentemente nada torna-se eventualmente algum lugar, nunca se vê o lugar ou as pessoas como elas são, mas como a tabula rasa para a projeção da fantasia utópica. É a esse descompasso entre o lugar real e a construção mental, e suas terríveis conseqüências, que as instalações de Alves se dirigem.

(...)

Em resposta a uma pergunta sobre como encarava a relação entre o seu trabalho político e artístico, Maria Thereza Alves respondeu que a política emprega estratégias para realizar tarefas específicas, mas a arte é sobre o "questionamento". Isso me parece a única maneira de desvendar uma noção como utopia, por seu significado ser tão ligado à nossas diferentes histórias e à complexidade dos confrontos e intercâmbios culturais mútuos que compõem nossa identidade hoje.

Este esclarecimento teria que separar aqueles aspectos que são universais, daqueles que são locais. Mesmo os aspectos universais da utopia estão divididos entre os pólos da estupidez humana e desejo humano. As loucuras surgem simplesmente do fato de que estamos todos ligados a cultura. O escritor indiano Sudhir Kakar apontou, por exemplo, como o estranho fascínio ocidental atual com o xamanismo deve aparecer a "alguém pertencente a uma cultura onde o xamã faz parte da vida cotidiana, e xamanismo é tão exótico como odontologia". (Quem, aqui, seria transformado pela noção de artista-dentista?) E Kakar chega a sugerir que a forma como o fascínio atual substituiu o seu oposto, a difamação anterior etnográfica do Shaman, é um sintoma da "busca ocidental por utopias". De outra perspectiva, o escritor chinês Lu Xun criticou a ingenuidade de seus conterrâneos educados que foram enviados pelo Imperador à Europa no final do século 19 para aprender com as maneiras ocidentais: "Leia as anotações deles, de hoje! O que impressionou a maioria deles foi uma figura de cera em algum museu, que jogava xadrez com um homem vivo.”

O anseio do ser humano é, obviamente, muito mais antigo do que o gênero de utopias pós-renascentistas. O desejo de abundância e fartura nas tradições artísticas e místicas dos povos agrícolas, o desejo de igualdade, e de vencer as diferenças e distâncias, nas tradições de reversões de carnaval, o desejo que é, na verdade, expresso no nome "Brasil" que, segundo uma teoria, deriva da palavra celta para "o lugar de admiração' - supostamente para ser localizado em algumas ilhas ao sul da Irlanda, onde se você fosse afortunado, os deuses deixariam vê-las: tudo isso deveria ser separado do conceito de utopia. Maria Thereza Alves considera a noção ocidental de utopia como decorrente da idéia renascentista de individualismo e, essencialmente, como interpretar o desejo de "ser livre" em termos de um plano. Utopia propõe um futuro planejado e controle explícito sobre o potencial humano, geralmente a idéia de uma pessoa do que esse potencial pode ser. Ela escreve: "Utopias, talvez, não podem servir como modelos, uma vez que são muito elaboradas especificamente. Elas não são abertas o suficiente para permitir as potencialidades possíveis que os seres humanos necessitam de um modelo."

Neste diálogo necessário, e complexo questionamento da nossa história, se um brasileiro tem para combater esses aspectos do pensamento utópico ocidental que eram inseparáveis da invasão, colonização e escravidão; uma pessoa inglesa, por exemplo, tem que ver que a nossa atitude imperial não era inata, mas também uma construção, e que mesmo alguns dos nossos símbolos proeminentes da identidade cultural nacional contra ele, na raiz, em termos que ainda carregam uma força hoje. Em 1759, Samuel Johnson publicou um discurso imaginário de um líder indígena americano sobre a vinda dos europeus:

Esses invasores se estenderam pelo continente, abatendo com sua ira os que resistiram, e aqueles que se submeteram a suas brincadeiras. Dos que ficaram, alguns foram enterrados em cavernas, e condenados a cavar metais para seus mestres; alguns foram utilizados em cultivo da terra, do qual tiranos estrangeiros devoram o produto; e quando a espada e as minas destruíram os nativos, fornecem seus lugares a seres humanos de outra cor, trazidos de algum país distante para morrer aqui no trabalho e na tortura.”

BRETT, Guy & MACIEL, Kátia (org.). Brasil Experimental – Arte/vida: proposições e paradoxos. Editora Contra Capa, Rio de Janeiro, 2005.

 
Vista da instalação "Nowhere", 1994. Foto: Peter MacCallum.


Detalhe da instalação "Nowhere". Cortesia da Galeria Michel Rein

Em 2000, contemplada com uma bolsa do DAAD (Deutscher Akademischer Austauschdients / Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico), Alves realizou Wake (2001). Amostras de solo foram extraídas de sítios de construções na cidade de Berlim e foram ‘plantados’. A pesquisa é conduzida pela história do sítio local. Esta é a pesquisa em Charlottenstraße 33, um dos 22 sítios de amostras.

Em Wake, amostras profundas da terra são coletadas de vários sítios de construções em Berlim. As amostras são plantadas e as sementes dormentes tem uma chance de germinar. “Ainda que as sementes pareçam mortas, na verdade estão vivas e podem permanecer assim no solo por décadas, até mesmo centenas de anos em dormência”, escreve a botânica Heli Jutila. As amostras foram plantadas e expostas em um espaço de galeria, à espera das sementes que ali germinassem (abaixo).


 

Um projeto semelhante se desdobrou em 2005, chamado de Seeds of Change (Sementes da Mudança). ‘Seeds of change’ é uma investigação fundamentada em uma pesquisa original para revelar os sítios e a flora de lastros históricos em portos europeus.
Por centenas de anos, pedras, terra, areia, madeira e tijolos foram utilizados como lastro para estabilizar veleiros mercantes de acordo com o peso da carga. Após a chegada no porto, o lastro e as sementes, que acidentalmente vieram no passeio, foram descarregados. As sementes podem ser de qualquer um dos portos e regiões ao redor do Mediterrâneo (e de seus parceiros comerciais regionais) envolvidos no comércio europeu. As sementes contidas na terra do lastro podem germinar e crescer, contribuindo para o desenvolvimento da paisagem européia e aterrando testemunhas para uma narrativa mais complexa da história do mundo do que a apresentada pelas contas ortodoxas, o que Alves chama de “história sem fronteiras”. Apesar de terem o potencial de alterar nossas noções de identidade do lugar como pertencentes a uma bio-região definida, a importância histórica dessas sementes é raramente reconhecida.
Cidades portuárias em ‘Seeds of change’: Marselha, Reposaari, Exeter, Liverpool, Dunkirk, Bristol e Rotterdam.
A exposição apresenta fotografias, desenhos, mapas, entrevistas, vídeos. O evento é parte de uma plataforma internacional do Safári por Cidades Portuárias, iniciada com a colaboração de Arnolfini (Bristol) com uma exposição, uma rede internacional, uma passeio geográfico, uma série de publicações e painéis envolvendo artistas, arquitetos, teóricos.
O projeto destaca diversos planos e trajetórias dedicados ao comércio, à mobilidade e à produtividade. Uma publicação de 250 páginas documenta o trabalho dos artistas, ensaios de teóricos, imagens e mapas, concluindo em Rotterdam a longa e articulada jornada do Safári por Cidades Portuárias. O projeto é atribuído aos subsídios à cultura em 2007 pela União Européia e é um dos eventos paralelos a Bienal Internacional de Arquitetura de Rotterdam.

Uma descrição mais detalhada do assunto, retirada da Frieze Magazine:

“Os cargueiros modernos de hoje utilizam água como lastro para estabilizar navios descarregados, mas em outros tempos de comércio marítimo, os navios utilizavam terra, pedras ou areia como lastro, se suas cargas de especiarias coloniais fossem muito leves – material que poderia ser facilmente descartado para liberar espaço no navio e colocar rentáveis escravos. Conseqüentemente, há milhares de anos, toneladas desse material de enchimento, suas sementes e o material orgânico do Novo Mundo foram despejados em terra no momento da chegada às cidades portuárias mais importantes da Europa. Para seu projeto “Seeds of Change” em Marselha, Liverpool, Exeter, Bristol, Dunkirk e outros sítios – sempre onde ainda não houveram estudos sobre a flora de lastro – Alves procurou a localização de sítios de lastro através de mapas antigos, registros de portos e palpites, pegando amostras de terra na tentativa de germinar qualquer semente arcaica que estivesse dormente no substrato. As apresentações resultantes reuniram os elementos textuais e fotográficos – bem como as próprias plantas – e, muitas vezes, envolveu a colaboração de moradores locais.”


Seeds of Change: Marseille, cortesia da Galeria Michel Rein


Seeds of Change: Dunkerque, 2005. Fotografia digital 70x10 cm


Seeds of Change: Dunkerque, 2005. Fotografia digital 70x100 cm

No mesmo ano, o vídeo What is the Color of a German Rose? relembra uma lista de frutos, flores e legumes que têm suas origens fora da Europa e de como esse intercâmbio induz a perda da identidade de determinadas espécies e o impacto desse fluxo constante no equilíbrio ecológico do planeta. A larga disposição desses produtos conclui a apresentação de um grande cesto do aumento de consumo, as principais características dessa raça da abundância, que sabe sua contraparte nos países que sofrem com a escassez de alimentos.


What is the Color of a German Rose?, 2005. Vídeo, 6'14

Para a Manifesta 7, que aconteceu em 2008 em Trento (Itália), a artista se juntou com seu marido e mais um colega para um projeto. Como regra, museus procuram exibir o extraordinário, mas o Museum of European Normality quer mostrar a vida cotidiana nas superfícies (densas) do personagem europeu. O projeto – um esforço colaborativo entre Maria Thereza Alves, Jimmie Durham e Michael Taussig – concentra-se no “período pós-colonial” desde a Segunda Guerra Mundial.

Taussig apresenta os mistérios da mimese e da alteridade, e com Friedrich Nietzche, a relação entre profundidade e superfície. Porém, esse museu não procura pela essência ou a profundidade de estar na Europa – procura os hábitos e os tiques. Alves pesquisa o hábito europeu de se olhar dentro dos olhos durante uma conversa e a necessidade de reafirmação dos homens europeus em rituais públicos, tocando o que algumas culturas consideram íntimo e pessoal, no vídeo Male Display among European Population. Ela também permite que o público participe ativamente de um programa de intercâmbio para redefinir políticas culturais nacionais. Durham reúne suas provas do comércio, crenças populares e o constante reforço da publicidade. Maria Thereza Alves é uma artista brasileira, cujo trabalho se concentra em torno das epistemologias sociais.


Male Display among European Population, 2008. Vídeo, 2'

E se invertêssemos o pensamento clássico ocidental de visitarmos nativos amistosos de qualquer lugar? Em seu docudrama Iracema (de Questembert), 2009, especialmente feito para a Bienal de Lyon, Maria Thereza Alves reconta a ambígua história de Iracema, uma jovem mulher do isolado vilarejo brasileiro de Corubime. Iracema faz uma longa viagem de São Paulo à França, onde descobre que acabou de herdar a propriedade de seu pai. Agora, ela é dona de uma vasta propriedade, cujas autoridades locais gostaria de compra-la antes de ver nas mãos de uma “selvagem”. Destemida, Iracema luta para manter a propriedade, onde funda o Questembert Institute for Art and Science. Ela discursa no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, disposta a conhecer artistas e pensadores. Com esse vídeo, Alves iniciou sua pesquisa com os nativos Krenak.




Iracema (de Questembert), 2009. Vídeo, 26'03

Sobre a Importância das Palavras, Uma Montanha Sagrada (roubada) e a Ética das Nações” (2009-2010), Maria Thereza Alves dedica sua produção artística a formas alternativas de conhecimento que, combinando arte e ciência, são capazes de promover engajamentos e mudanças reais em contextos sociais minoritários. Na 29a Bienal de São Paulo, a artista apresenta uma etapa importante de sua luta em favor da manutenção da língua e da cultura dos Krenak, povo indígena brasileiro hoje reduzido a uma comunidade de 600 pessoas, divididas entre Minas Gerais, Mato Grosso e São Paulo. Maria Thereza acaba de concluir a tradução para o português de um dicionário Krenak-Alemão feito no século XIX, pelo expedicionário Bruno Rudolph, e hoje mantido como meio mais rico de acesso ao vocabulário e às tradições desta comunidade indígena ora populosa e disseminada no território brasileiro.

O dicionário Krenak-português assume camadas geracionais de tradução entre colonizados e colonizadores e reestabelece um elo mais próximo entre a herança histórica deste povo indígena e seus poucos representantes na contemporaneidade. Com tiragem de 1.000 exemplares, o dicionário ficará disponível para consulta na Bienal, num ambiente de pesquisa e rememoração, que também conta com dois videos, uma foto da montanha sagrada dos Sete Salões (MG) e uma petição pública. Depois da mostra os exemplares do dicionário serão distribuídos para uso dos Krenak.

Clique aqui para ver uma descrição sobre o lançamento desse dicionário em Portugal (Facebook).


Montanha Sagrada Sete Salões. Fotografia


Vista da exposição "Sobre a Importância das Palavras, uma Montanha Sagrada (roubada) e a Ética das Nações", 2009-10. Prateleira para 1.000 exemplares do dicionário e, ao fundo, reprodução do vídeo "Iracema (de Questembert)", 2009.


Trabalhos: http://www.michelrein.com/Artist.php?Artist=Maria%20Thereza%20Alves
Indios krenak (referência de um trabalho): http://pt.wikipedia.org/wiki/Crenaques
Pdf de imagens de videos e trabalhos: http://www.michelrein.com/imagesFM/Down48.pdf

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